Aline Midlej: O cuidado com as memórias é resgate de nós mesmos
Em nova coluna, jornalista da Globo News reflete sobre os momentos e as imagens que resistem na lembrança e nos porta-retratos, trazendo sentido e nos movendo adiante Adoro quando o taxista vai checar se o pix caiu na conta e, do banco traseiro, eu consigo ver a tela de fundo do celular dele. Um momento de intimidade fugaz que, de alguma forma, agrega sentido àquele momento. Vejo a imagem dele beijando a esposa, abraçado com os filhos ou mesmo tomando uma cerveja com a roda de amigos de infância, e assim nos conectamos numa humanidade comum. Estamos ali, os dois, encarando mais um dia para, ao final, podermos estar abraçando os nossos com algum conforto e uma nas “homes e grupos de zap e nova dose de felicidade. Momentos registrados em frequência inédita graças à tecnologia que está nas mãos a todo momento, a partir de onde registramos, arquivamos e exibimos para o mundo, as memórias construídas.Leia tambémE, assim, olhando meu descanso de tela do celular, me dei conta de que não havia imprimido uma foto sequer de Celeste. Todos os nossos momentos em família desde o seu nascimento – há onze meses - estavam registrados no meu coração (na mente?). Mas não havia nenhum porta-retrato nos quartos ou no corredor que leva até a sala transformada em playground de bebê. Seria um sinal de estar vivendo intensamente a presença real dessa extraordinária existência em nossas vidas? Ou um descuido com essas mesmas memórias? Olho as fotos que já estavam impressas espalhadas pelos cômodos e me recordo de como faz olhá-las. Num cotidiano cada vez mais apressado e opressor com o ócio, rememorar o máximo possível o que realmente nos alavanca a cada manhã parece ritualístico.Num Rio Grande do Sul devastado, durante o trabalho de limpeza pós agudez do maior desastre climático da região, a busca nos entulhos, na verdade, é por eles mesmos. Por suas histórias de luta enlameadas, mas não destruídas. Resistem em suas lembranças resilientes e em porta-retratos que emergem do lixo, literalmente. Estão todos renascendo. Tirando novas certidões de nascimento, começando outro álbum de vida. Renascem já com a lição sobre o melhor e o pior que pode vir do ser humano em situações extremas. Nos bairros da capital gaúcha onde o retorno pra casa já é possível, as vendas de móveis e eletrodomésticos movimentam o comércio mas a notícia que fica na memória é a de que a maior parte das vendas foi para doações. Os heróis anônimos continuam emergindo da devastação, assim como os porta-retratos. Eu colocaria uma foto de um deles na minha sala, ao lado da fotografia do dia em que Celeste nasceu.“Por mais avançada que seja a tecnologia, não existe nada melhor para documentar um fato importante do que um papel impresso”, escreveu Washington Olivetto em coluna recente no O Globo. O texto defendia o valor do jornal impresso de cada dia. Sou dessas, ainda mais analógica do que digital, reforço esse apego ao passado a cada despertar em que busco a edição nova que bate à minha porta. Todos os dias sento com as páginas e o cheiro de notícia que seguem me guiando no ofício. Mas há também aquelas imagens que não importam se em papel ou digitais, viram memória do que há de mais urgente neste país: uma justiça realmente justa. O ensaio de gestante da Kathlen Romeo, uma jovem morta com um tiro de fuzil disparado por um policial militar em 2021, numa comunidade do Rio de Janeiro, sempre volta à televisão a cada atualização do caso e me atravessa. Ela estava grávida de quatro meses e, três anos depois, o julgamento ainda não foi concluído. Aquele álbum que poderia ser meu ou seu, leitora, insistem em entulhar sob a negligência e o racismo crônicos no Brasil, mas ele volta a emergir das memórias dos familiares dessa garota que tinha o mesmo direito - de tantas de nós - de ser mãe e de estar segura.O cuidado com as memórias é resgate de nós mesmos. De volta ao sentido do que nos traz até aqui, para a mobilização social que não pode parar, redirecionando a qualidade das nossas relações e convivências. Vamos encher a casa de porta-retratos e manter nossas mentes sãs com os momentos vividos e que tornam esse presente possível?Nota: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Vogue Brasil.